Coisa braba a vida a judiar da gente… Por muito pouco, não perdeu a carteira pelo furo do bolso da bombacha, no banheiro da rodoviária. Num primeiro momento, no supetão, de susto, pensou que fora num daqueles bolichos dali da volta. Campeando com astúcia, encontrou a dita cuja atrás do vaso sanitário onde satisfizera uma necessidade biológica que ele chamava de “miolégica”. Ficou aliviado pelos dois motivos, sempre com a cumplicidade do dito vaso de louça. Pouco tempo depois, com o desfecho do acontecido, como num passo de mágica, botou uma pedra em cima, partiu para outra. Até comemorou o “não prejuízo” com um talagaço de canha com biter.

Joãozinho era uma “figuraça das mais macanudas”, pessoa especial na sua singeleza. “Casou” pelo rádio, como ele contava, por procuração, sob a alcunha de Peão Solito (casou no modo de dizer). Companheiro inseparável das pescarias de anzol pelos arroios e sangas da vizinhança, e das concorridas caçadas de tatu das férias de julho.

Arrumou uma china lindaça, carnuda, trabalhadeira e amorosa, segundo propagava orgulhoso, recostado num cepo de corticeira. Um verdadeiro achado, ganhou na loteria. Como se fosse um ninho de quero-quero no descampado daqueles campos pedregosos, por sorte.

Tirava o sustento no lombo do cavalo, curando umbigo de terneiro novo, recorrendo cercas de arame a campo fora, banhado e mato fechado, esquilando ovelhas a martelo com uma tesoura velha já gasta, capinando lavoura de mandioca e batata doce com uma enxada de cabo de guajuvira, na rotina divertida de um peão caseiro, cortando caruru, escoiceando touceira de milhã no meio dos pezinhos do milho do tarde, amarelados pela pouca qualidade e falta de chuva.

Aquela gente humilde da campanha se divertia no seu próprio meio em dia de carreira, baile povoeiro ou festa na capela. De vez em quando, uma reunião no campo santo para guardar algum esqueleto dos mais antigos, gastos pela usura, nos finados ou nos dias de marcação.

Joãozinho plantava de meeiro nas terras do patrão, fora da serviçama que fazia por dia, para tirar uns pilas maiores para gastar na cidade. Tinha umas irmãs solteironas que moravam por lá, costureiras antigas de vasta freguesia. Esperava a colheita do milho, do feijão ou do azevém, vendia a sua parte para o primeiro comprador que aparecesse disposto a pagar à vista, e se mandava para o povo, decidido a pernoitar “num braço” por uns dois ou três meses seguidos.

Na outra semana, estava de volta, liso e desenxabido, a planejar a próxima safra. Aí sim, iam se ver com ele. Cobraria tudo com juros e correção “manetária”, tostão por tostão, inclusive os desaforos recebidos. Colocaria sim os pingos nos is, que nessas ocasiões já eram muitos.

Ah, já ia me esquecendo. A vigarista era a mesma tal china lindaça que fora seu amor por pouco tempo, porquanto teve dinheiro no bolso e esperança no coração malsinado. Afinal, ele vivia pra fora, e muito pouco comparecia para uma noite de amor ocasional que fosse.

Casereava, na sua rotina amadrinhadora, buscando sem pressa, na volta de um naco de fumo em rama, picado na calma, esfarelado na palma da mão, enrolado na palha amarelada do milho catete e aceso no próprio resto de tição do fogo que nunca se apagava, a paz tranquila da sabedoria dos que se contentam com pouco, porque o muito costuma ser mais arisco para os que são mal traquejados para lidar com ele.

Existia um sem número desses Joãos espalhados pelos confins das campanhas, enfurnados nos galpões, conservadores das fazendas e das lavouras, no mister da lida bruta a que já nasceram acostumados, assim como os cuscos e os bichos do terreiro, com os quais repartiam a solidão dos muitos janeiros, aquerenciados.

Assim foi o Joãozinho, de causos abundantes, de pressa distante e de raros amigos. Morreu esquecido, num ermo de galpão, envolto numa nuvem de fumaça de palheiro brabo e no calor de um trago de canha que serviam para mascarar as suas desilusões, na solitude de uma noite de inverno de geada grande.