Não, não, esta não é a estória do “El Cordobês”, o cavalo faceiro de um dos causos de Luiz Coronel. Este baio de que lhes conto pertencia a um vizinho lá de casa e tem origem em ocorrência bem distinta daquele.

Assim segue o relato de como tudo se “assucedeu”: de tardezita, tempo de verão na campanha gaúcha, mês de novembro, dia de mormaço com prenúncio de tragédia, armou-se o tempo pros lados dos castelhanos. O céu velho que era um breu, naquela nesga que se vinha como um poncho antigo de arrasto, sacudindo a courama lá por cima, e o taura velho tranquilo, parecendo que nem era com ele, mateando no oitão da casa, ajeitando a erva já meio lavada com a bomba de prata já gasta de tanto mate sorvido; a borla pé, uns dois ou três cuscos de estimação e das confianças de língua de fora, na sombra, buscando se livrar do calorão que inundava os pastos. Nem ventinho fraco, uma aragem que fosse não corria. As folhas das árvores nem se mexiam.

De repente e de sopetão, uma baita trovoada pros lado do banheiro velho – um estrondo de fazer cair o mateador do banco de corticeira e um mandado de riscar o que sobrava de céu de alto a baixo. E se veio água, de balde, assim despejada no terreiro, e que escorria levando cisco por diante lá pros lados da mangueira das vacas mansas.

Entreverado com esse burburinho destemperado de porco, galinha e bichos de casa em disparada, buscando abrigo no galpão, ouviu-se um relincho esganiçado de surpresa e sofrimento do baio de estimação que pastava com o pescoço enfiado no arame da cerca da horta do pasto. Não é que o inusitado aconteceu?! O raio rachou o tronco centenário do umbu do chiqueiro das ovelhas e correu pelo aramado, decepando a cabeça do baio pelo tronco do pescoço, num talho de guilhotina afiada e desinfetada pela eletricidade de alta voltagem que caracterizava o bruto. O corpo retorcido e ensanguentado caiu para fora, e a cabeça, de olhos arregalados e língua retorcida, ficou do outro lado da cerca, no meio do azevém onde pastava.

Podia-se dizer dos defeitos do Compadre, mas destreza, tino e sangue frio ele tinha de sobra, ninguém que lhe conhecesse mais de perto duvidava dessa agilidade de pensamento e atitudes. Refeito do susto do tombo e do extravio dos aperos do mate, saltou se molhando para ver de perto o acontecimento que vitimou seu companheiro de lida. Correu nos fundos da cerca do piquete e ajuntou, num upa, um punhado de resina de um pé de aroeira preta que apertou na palma da mão, junto com uns tocos de espinho e restos de folhas, e colou a cabeça do pingo de olhos semicerrados no resto do corpo estrebuchante de lombo arrepiado. Na pressa para salvar o cavalo, não reparou no focinho que ficou virado para cima, de cabeça invertida.

Não demorou muito tempo para virarem, ele e o seu pilungo, motivo de curiosidade e anedotário pelos bolichos das redondezas. Algumas diferenças e adaptações se fizeram necessárias e urgentes para a sobrevivência da montaria. Seu alimento preferido passou a ser palha de coqueiro e rama de taquareira, e água para matar a sede só mesmo quando chove, na beirada da casa, na goteira do telhado. Foi também construída uma parceria com os cachorros da casa, e o baio se comunica trocando as orelhas viradas para baixo e com a crina de arrasto nas macegas quando escaramuça. De noite, se entretém mirando as estrelas, confundindo-as com as gotas da chuva que também caem “la de riba”, bebendo seus mistérios na insônia das madrugadas.

Consta, também, que ultimamente anda muito encasquetado com a luz de um aviãozinho que teima em aparecer todas as noites, forte e barulhenta, pros lado de Cachoeira e viaja com pressa pras bandas de Uruguaiana. Até hoje ainda não pode descobrir quando é que volta para viajar de novo, sempre na mesma hora da madruga, ele cruza no céu, justo na hora em que ferraria no sono. Quando não há lua nem estrelas, fica desorientado, de cabeça virada, tal qual os homens quando se apaixonam.