Muitas vezes, ouvi Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf, ser resumido como uma história que acompanha um dia na vida de Clarissa Dalloway. Isso está inclusive na quarta capa da edição que tenho. Bem, sim, isso acontece, mas há muito mais ali. Definir a obra assim é simplificar demais as coisas.

Tudo começa com Clarissa saindo de casa para comprar flores. Enquanto caminha pelas ruas de Londres, ela vai lembrando coisas que aconteceram em seu passado, tanto o recente quanto o distante, e refletindo sobre si mesma, seu jeito de ser e suas atitudes. Esse ir e vir no tempo se repete também quando ela encontra amigos, e nos permite conhecer tanto a relação quanto a familiaridade que existem entre eles do ponto de vista de Clarissa. Mas como não é apenas ela quem tem voz, esse jogo com as lembranças também permite que outros personagens apresentem reflexões sobre ela e sobre o estrato social que ela representa.

A obra se passa na Londres pós-Primeira Guerra, e pode-se dizer que, além de um dia na vida de Clarissa, também retrata um dia na vida londrina deste período, apresentando reflexões a partir do ponto de vista de nativos e de estrangeiros.

Apesar de a personagem principal ser Clarissa Dalloway, outros também têm sua vida mostrada em detalhes quando refletem sobre ela. Tanto que me parece difícil considerá-los meros coadjuvantes. É o caso de Septimus Warren Smith, um londrino que luta na Primeira Guerra e, quando volta para casa, tem de lidar com os fantasmas. Me custa até dizer que ele sobreviveu à Guerra. É possível chamar aquilo de vida? Seu corpo ainda está ali, mas as consequências psicológicas do que viu e do que passou, são duríssimas.

Algo a que o leitor deve estar atento é às mudanças do que decidi chamar de personagem-objeto, no sentido de “àquele a quem a narrativa se refere”. Em literatura, existe uma definição para personagem-objeto, mas me permito o empréstimo da terminologia por dificuldade de achar uma denominação mais adequada. Não as confunda!

A obra é narrada em um “fluxo de consciência”, vai detalhando até o mais íntimo pensamento dos personagens. Mas o personagem-objeto muda de acordo com o momento em que um personagem cruza com outro pelas ruas de Londres, nem sempre com um aviso claro de que aconteceu. Algumas vezes em que estava pouco atenta à dinâmica do texto, isso me passou despercebido e tive de reler longos trechos. Mas essas mudanças são muito interessantes para a experiência de leitura, criando um efeito que me lembra as sequências de alguns filmes, como se a câmera seguisse um personagem e, quando encontrasse outro, mudasse de direção bruscamente para acompanhá-lo.

 

Referência:

WOOLF, Virginia. Mrs. Dalloway. Tradução de Mario Quintana. Apresentação de Marília Gabriela. 10ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2018. 160p.