Nesse tempo de pandemia e consequente isolamento social, sobra espaço para pensar, relembrar, sintonizar nos noticiários, e ver que muita coisa deixou de ser como foi. A História do Brasil e a Mundial estão passando por um crivo apurado que dá largas para diferentes interpretações. Assim como as leis brasileiras que dividem os seus doutores em opiniões contraditórias, difíceis de serem aplicadas.

Quem diria que veríamos – pelo menos de forma virtual – estátuas de aclamados heróis serem arrancadas de seus pedestais nos episódios de manifestações contra os preconceitos de cor, de gênero, de minorias.

Pois é, por muitos anos, como professora primária, contribuí para que meus alunos cultuassem sua memória, e agora vejo que muitos dos mitos foram a favor da escravidão e até seus influenciadores. E em prosa e versos, dos livros escolares, eu os levava a admirá-los e conhecer sua história.

Lembro, como se fosse ontem, da vez em que me coube preparar a Hora Cívica em homenagem a Duque de Caxias, o “Pacificador”. Agora caiu a máscara, e ele aparece como responsável pela traição e chacina de combatentes afro-americanos.

Perguntei quem gostaria de declamar a poesia sobre o vulto notável. Foram tantos os dedos apontados que eu tive que fazer um sorteio. A sorte foi do Silvino, o aluno mais capeta, que promovia as desordens e interrompia o andamento das aulas. Estávamos em agosto do meu primeiro ano como professora, e por causa dele e mais outros dois desordeiros, eu ainda não tinha conseguido dominar a classe. Conformada com a escolha, empenhei-me no preparo do “artista” para o evento. No entanto, o que lhe sobrava em esperteza e malícia, faltava-lhe em facilidade de aprender. Ainda bem que ele me pareceu motivado e levou o assunto a sério.

No dia marcado, todos os alunos acompanhados de suas professoras à frente do Grupo Escolar, a Hora Cívica começou, e nada do Silvino. Passei maus momentos, mas eis que chega o declamador com o uniforme – avental branco – limpíssimo e até engomado, o cabelo repartido, ainda pingando gotas do banho, uma figura! Chegou a vez dele. Notei seu nervosismo. Começou a declamar, mas de vez em quando gaguejava e esquecia a sequência. Tive de servir de ponto, e finalmente a missão se cumpriu.

Se não me engano, era sábado, pois só o vi de novo no Estádio Municipal, na partida de futebol entre os dois clássicos da cidade. Mas foi no final da partida que o avistei, bem longe, do outro lado do campo. Foi quando um menininho vendendo rapaduras se aproximou com um embrulho de papel pardo, bem limpinho, que me entregou. Eu me desculpei, sinto muito, não trouxe a bolsa, estou sem dinheiro aqui. Ele disse que não era para pagar, e apontou para o menino que me mandara. Pasmem: era o Silvino. A partir daí, ficamos amigos, ninguém mais se insubordinou na minha aula, e eu passei a sentir que escolhera a carreira mais promissora e gratificante que me estava reservada.

Justiça seja feita: esse feliz desfecho, eu fiquei devendo ao Duque de Caxias.