Por Alcy Cheuiche

Para Anita Garibaldi, no seu bicentenário. 

 

Eu seguia a cavalo, com a mulher do meu coração ao lado. Cavalgava na vanguarda de uns poucos companheiros, sobreviventes de muitas batalhas. Mas que me importava não ter mais roupas do que as que me cobriam o corpo e servir uma pobre República que a ninguém podia pagar um soldo? Eu tinha um sabre e uma carabina que levava atravessada diante dos arreios. E tinha Anita, meu maior tesouro.

Giuseppe Garibaldi, trecho de suas Memórias, ditadas ao escritor Alexandre Dumas.

 

Triste retirada de Laguna. Depois de quatro meses, a República Catarinense agoniza. Somente ainda acreditam nela o Major Teixeira Nunes, dito o Gavião, no comando dos Lanceiros Negros que sobem a serra em direção a Lajes. E cavalgando com eles Giuseppe Garibaldi, sua amada Anita e o jornalista Luigi Rossetti.

O que acontecera? Nada mais do que um susto levado pelo Império, ao constatar que a nota publicada pelo Presidente Bento Gonçalves no jornal O Povo, fundado por Rossetti em Piratini e hoje sendo publicado em Caçapava, não se tratava de uma bravata inconsequente: Os rio-grandenses, debaixo dos auspícios do Sistema Republicano, estarão sempre dispostos a se federarem às províncias brasileiras que adotarem o mesmo sistema.

Esta é também a filosofia mazzinista que levou Garibaldi a ser condenado à morte na Europa: Deus é o Povo! Nossa Pátria é o mundo sedento de justiça. Ele e Rossetti não estão lutando somente pela República Rio-Grandense, mas por uma futura federação republicana englobando todo o Brasil. O mesmo tipo de união que desejam para a Itália, uma colcha de retalhos sem unidade nacional.

Uma poderosa esquadra imperial atacara Laguna e Anita fora a primeira a disparar contra ela um tiro de canhão. A jovem Ana Maria de Jesus Ribeiro, nascida a 30 de agosto de 1821, está com dezoito anos de idade. Casada pela força da pobreza, aos quatorze anos, com um homem que fugira da Laguna republicana, está apaixonada por Garibaldi e cavalga ao seu lado em direção a Lajes. Os dois juraram nunca se separar e estão decididos a cumprir esse juramento.

À medida que a tropa avança, cresce a inclinação da montanha. Em fila, por picadas estreitas, os cavalarianos equilibram-se à beira dos precipícios. Surgem também lufadas de neblina que os obrigam a interromper várias vezes a marcha. À noite, a vigilância é redobrada pela presença de animais ferozes. Os alimentos minguam e os soldados são obrigados a caçar, o que também os retarda. Além disso, são muitos os feridos transportados em carroças. Anita ajuda a trocar suas bandagens improvisadas e elevar-lhes o moral.

Finalmente, no último pouso na mata, ouvem mugidos de gado nas proximidades. O planalto está próximo e com ele também a presença dos inimigos. Na margem esquerda do Rio Pelotas, já quase atravessando as águas barrentas para voltarem a Santa Catarina, travam combate contra as tropas do Brigadeiro Xavier da Cunha. Desbaratam o inimigo, cujo próprio comandante morre afogado, ao tentar, em fuga, atravessar o rio.

Quatro dias depois, a 18 de dezembro de 1839, entram em triunfo na Vila Nossa Senhora dos Prazeres dos Campos de Lages. Ali, juntamente com os revolucionários catarinenses, os Lanceiros Negros, que um dia tinham sido escravos e hoje são cidadãos da República Rio-Grandense, reinstalam a República Catarinense, desfraldando sua bandeira verde e amarela, com uma faixa branca significando a paz.

Os próximos dias são felizes para a Anita e Giuseppe. Hospedados numa pequena casa, a primeira onde vivem como marido e mulher, deitam-se entre lençóis alvos e perfumados. A paz é efêmera, mas muito valorizada pelo povo de Lages. Ninguém ali tolera mais os esbirros do Império, que arrecadam cada vez mais impostos, roubam muito gado nas pastagens e convocam homens de todas as idades para servirem como soldados, sem critério algum.

Véspera de Natal. A população se dirige à igreja para assistir à Missa do Galo. Anita, graças à generosidade de algumas mulheres que acaba de conhecer, está com um vestido de musselina, sapatos de marroquim   e com a cabeça coberta por uma mantilha sevilhana. Nesta noite, ela e Giuseppe vivem deliciosas horas de amor. E, certamente, ali foi plantada a semente do primeiro filho, Menotti Garibaldi, que veio a se tornar um importante general do exército italiano.

No entanto, após o Dia de Reis, a luta recomeça para defender Lages. Anita acompanha Garibaldi num confronto com os imperiais, mas ele a obriga a ficar na retaguarda com o piquete que cuida da munição de reserva. O combate é tremendo e dura até a noite. Ao tentar aproximar-se do entrevero, para levar munição, Anita é ferida de raspão na cabeça e aprisionada. A bala perfurou seu chapéu, arrancando-lhe uma mecha de cabelos.

Com o fim do combate, é levada à presença do comandante dos imperiais, Coronel Mello Albuquerque, que a informa da morte de Garibaldi. Inconformada em deixá-lo apodrecer como carniça, consegue autorização para reconhecer o corpo, o que também é do interesse dos imperiais, que pretendem esquartejá-lo para exibir esses troféus macabros em espeques pelas estradas. Vigiada de perto, olha no rosto de muitos mortos, mas, felizmente, não encontra seu amado. Tarde da noite, aproveitando-se de que as sentinelas estão afogadas na cachaça, consegue saltar num cavalo e se evade a passo e depois a galope por uma trilha na mata.

Passa parte do dia seguinte escondida e só consegue chegar de noite a Lages, depois de longa cavalgada. Não é preciso avançar muito pelas ruas para descobrir que a vila fora retomada pelos imperiais. Evitando as patrulhas armadas, entra no pátio de uma casa e resolve arriscar-se. Bate de leve à porta dos fundos, que é aberta por uma mulher, logo seguida de outra. Confiando que a maioria da população é republicana, diz em voz baixa:

– Estava com meu marido no combate. Tenho que me esconder. Preciso apenas de um canto para passar a noite.

Tira o chapéu, mas, à luz tênue do lampião, as donas da casa não conseguem identificá-la como mulher: vestida de homem, imunda e ainda com os cabelos aplastados de sangue. Exigem uma prova, que ela concorda imediatamente em oferecer. Desabotoando a túnica, exibe os seios morenos aos olhos das outras mulheres.

Bem alimentada e depois de algumas horas de sono, Anita volta a montar a cavalo e deixa Lages a procura do seu amor. As duas anfitriãs ficam olhando aquela estranha mulher que parte a cavalo em direção ao sol nascente. Nunca ficarão sabendo que salvaram a vida de Anita Garibaldi e de seu filho Menotti. Que tiveram abrigada em sua modesta casa, aquela que viria a ser uma das mais famosas brasileiras na História Universal. A guerreira farrapa, uruguaia, italiana; a heroína de dois mundos imortalizada no bronze e na poesia com um filho num braço e no outro um fuzil.

Foto: Luiz Ventura